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esus cura um cego de nascença, no templo, que é o espaço da peregrinação
religiosa judaica, tendo que enfrentar a visão extremista dos fariseus. A
reação violenta contra a realidade que se mostra plausível diante de seus olhos
é fruto de uma conhecida elaboração doutrinária da religião, em que a lei tem
supremacia sobre a condição humana. Nada mais previsível que uma palavra (ou
melhor, doutrina) religiosa imbuída da arrogância e da prepotência de suas
“verdades” irrefutáveis.
Mas, no evangelho de Jesus, o amor não conhece os limites ou imposições
da lei. O amor é maior que a religião [1]. Ele enxerga a necessidade do outro
como clamor. Não há mais tempo para longas explicações sobre o porquê de nossas
frequentes lamentações. Por isso, dentro do cenário restrito das autoridades, o
Mestre envia o cego de nascença à piscina de Siloé [2]. Logo em seguida,
recuperada a visão, todos em volta, com olhos aturdidos, perguntaram-se sobre
aquele homem, e se porventura não haveria naquela versão dos fatos alguma confusão
ou ludíbrio.
“Sou eu mesmo” (vers. 9). Esta é a resposta do homem. A indicação que
ele dá aos fariseus é sobre certo “homem chamado Jesus que fez lama em meus
olhos e mandou que fosse lavar os olhos na piscina de Siloé. Fui, lavei-me e
recobrei a vista” (vers. 11).
Há um simbolismo profundo nesta passagem. O Mestre usa os elementos da
terra, a lama, para abrir os olhos, depois a água. A cura que nos abre os olhos
para a dimensão do divino inicia-se com a ligação a mãe terra. As mãos são os
instrumentos e a terra a fonte. Para chegar à água na piscina de Siloé é
necessário correr o risco da adesão à terra por meio do toque das mãos do
Mestre em nossos olhos. O caminho é a plenitude telúrica, a fim de abrir-nos os
olhos para a “luz do mundo” [3].
Contudo, para o poder religioso instituído na época, aquela cura
representa uma profunda ameaça à estabilidade moral do povo. Aquele homem cego
era sinal de um nascimento em pecado, segundo a interpretação corrente. Jesus,
mais uma vez desapontando os olhos embaçados dos fariseus, aponta a
misericórdia de Deus como sinal de vida. Há, então, um choque entre duas visões
de Deus.
Uma, que aproxima Deus dos olhos dos homens. É a letra da lei que impera
nesta primeira interpretação. Temos a herança do pecado sobre o sofrimento de uma
vida destinada à exclusão da graça. Aquele homem era mendigo, perambulava pelas
ruas sem qualquer sinal de mudança.
Com a chegada da “luz do mundo”, rompe-se com a obnubilação advinda de
um olhar determinista da autoridade religiosa sobre a pessoa humana. Neste
caso, a lei maior é o amor, e os caminhos que se mostram para o homem cego
condenado à vida mendicante são o da misericórdia e do perdão, “para que nele
sejam manifestadas as obras de Deus” (vers. 3).
É preciso abrir nossos olhos diante da visão estreita de uma religião
que apenas julga e condena. Dentro do “lugar sagrado” é preciso dizer que não é
o templo de pedra que nos religa a Deus, mas uma consciência aberta à realidade
infinita da abundante graça divina. Jesus mergulha o ser humano no âmbito do
ser. Ele nos envia para a piscina de Siloé, simbolicamente, para que possamos
ver novamente.
A água pode ser interpretada como a própria experiência da reconciliação
do homem cego com Deus. A água purifica, lavando nossos olhos da poeira do egoísmo
e da limitada compreensão de nossa existência no mundo.
A ida à piscina transporta-nos, com isso, para os pés do Mestre. Isto
incomoda profundamente as autoridades religiosas de ontem e de hoje. Assim
sendo, a experiência da visão purificada na água de Siloé implica na adesão
incondicional à lei do amor. Agora vemos translúcidos. Jesus nos abre a porta
do templo interior, onde reside a visão essencial de todas as coisas.
A passagem termina com uma palavra dura aos fariseus: “se fôsseis cegos,
não teríeis pecado; mas dizeis: ‘nós vemos’. Vosso pecado permanece” (vers.
41). Como é sabido, é bem mais fácil falar do julgamento alheio e explicar os
males do mundo pela lente da condenação. Isto pressupõe um lugar de fala que se
auto-intitula “santo”. Tal postura traduz claramente que é muito arriscado
manter uma postura religiosa aos olhos do mundo, sempre santa, e sem pecados...
É comum rodear a palavra condenatória com ares de representantes de Deus
na terra. Jesus, em sua peregrinação terrestre, jamais se auto-intitula
“santo”, pois sabe que o mergulho no ser implica em uma atitude silente, de paz
e gratuidade.
Precisamos de um olhar que se lance ao mundo, ansioso por ver a “luz do
mundo”. No contato direto de nossos olhos com a luz, surgirá inicialmente a dor
do ver sem óculos escuros. A experiência da visão redimida é uma adesão
paulatina, no dia-a-dia dos desafios no mundo. Constitui, portanto, um desafio
radical que traduz a suprema experiência do ver da fé, plena e livremente
liberta das amarras da lei e do dogma religioso, ainda sem perceber a graça
translúcida diante das colunas de pedra de nossos ornamentos, pré-conceitos,
julgamentos e condenações.
Vendo frente a frente o homem que nos restitui a luz, poderemos, enfim,
dizer: "agora, Senhor, eu te vejo com meus próprios olhos".
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