terça-feira, 29 de maio de 2012

CORREIO MFC BRASIL Nº 286

Memorando lúcido e profético de 240 professoras e professores universitários de teologia sobre a crise da Igreja Católica na Alemanha.

Um ressurgimento necessário

Já passou um ano, desde que se tornaram públicos os casos de abuso sexual de crianças e de jovens por parte de sacerdotes e religiosos no Colégio Canisius, em Berlim, na Alemanha. Seguiu-se um ano que mergulhou a Igreja católica na Alemanha em uma crise sem precedentes. A imagem que hoje pode ser observada é ambivalente: A princípio iniciou-se todo um processo para fazer justiça às vítimas, remediar as injustiças e detectar as causas do abuso, encobrimento e dupla moral encontradas em âmbito interno.
Em muitos cristãos e cristãs responsáveis, com e sem ministério ordenado, cresceu – depois da indignação inicial – o entendimento de que profundas reformas são necessárias. O chamado a um diálogo aberto sobre Poder e Estruturas de Comunicação, sobre a forma de organização do Ministério eclesial e a participação dos e das fiéis na responsabilidade, sobre a moral e a sexualidade despertou expectativas, mas também temores: Estaria aí se perdendo, talvez, a última chance para um despertar da paralisação e da resignação, por deixar passar ou minimizar a crise? O incômodo de um diálogo aberto sem tabus dá medo, ainda mais com a proximidade de uma visita papal. Mas a alternativa: silêncio sepulcral, já que as últimas esperanças foram destruídas, não pode ser a solução.

A profunda crise de nossa Igreja exige falar também destes problemas, que à primeira vista não têm a ver diretamente com o escândalo do abuso e do seu encobrimento por décadas. Como professores e professoras de teologia já não podemos ficar calados. Vemo-nos na responsabilidade de colaborar para um verdadeiro novo começo. 2011 tem que tornar-se um ano de ressurgimento para a Igreja.

Durante o ano passado abandonaram a Igreja Católica mais cristãos e cristãs do que nunca antes; cancelaram sua obediência à hierarquia eclesial ou privatizaram sua vida de fé, para protegê-la da instituição. A Igreja tem que entender estes sinais e ela mesma tem que sair das estruturas calcificadas, para recuperar nova força vital e credibilidade.

A renovação de estruturas eclesiais não surgirá mediante a proteção medrosa dos pares, mas somente com a coragem da autocrítica e com a aceitação de impulsos críticos – que brotam também de fora. Isto faz parte das lições do passado: A crise do abuso não teria sido trabalhada com tanta decisão, não fosse o acompanhamento crítico da opinião pública. Somente através da comunicação aberta e transparente, a Igreja pode recuperar confiança. Somente quando a autoimagem e a imagem externa da Igreja coincidirem, ela terá sua credibilidade de volta. Dirigimo-nos a todos e todas, que ainda não desistiram da esperança de um novo começo da Igreja e que lutam por isto. Queremos retomar os sinais para o ressurgimento e diálogo, que alguns bispos assinalaram nos últimos meses em suas falas, pregações e entrevistas.

A Igreja não existe para si mesma, nem atua em causa própria. Tem a missão de anunciar a todas as pessoas o Deus libertador e amoroso de Jesus Cristo. Isto somente pode fazê-lo se a mesma é espaço e testemunho crível da notícia libertadora do evangelho. Seu falar e atuar, suas regras e estruturas - todo o seu tratamento com as pessoas dentro e fora da Igreja - tem que cumprir a exigência de reconhecer e promover a liberdade dos seres humanos como criaturas de Deus. O respeito incondicional para toda e qualquer pessoa humana, respeito à liberdade de consciência, compromisso com o direito e a justiça, solidariedade com os pobres e perseguidos: estas são medidas fundamentais da teologia que resultam do compromisso da Igreja com o Evangelho. Nisto se concretiza o amor a Deus e ao próximo.

A orientação a partir da notícia libertadora bíblica implica uma relação diferenciada com a sociedade moderna: Em alguns aspectos, a sociedade se adiantou à Igreja, quando se trata do respeito à liberdade e responsabilidade do indivíduo; daí a Igreja pode aprender, como já assinalou o Concílio Vaticano II. Em outros aspectos, uma crítica desta sociedade, a partir do espírito do Evangelho é indispensável, por exemplo, onde as pessoas são qualificadas somente segundo seu rendimento, onde a solidariedade mútua se perde ou a dignidade humana é pisoteada.

Em todo caso, no entanto, vale: O anúncio da liberdade do Evangelho é o critério para uma Igreja crível, para seu atuar, para sua conformação social. Os desafios concretos que a Igreja tem que enfrentar não são novos. Contudo, mal e mal se percebem reformas direcionadas para o futuro. O diálogo aberto tem que ser levado para os seguintes campos de ação:

1. Estruturas de participação: Em todas as áreas da vida eclesial, a participação dos leigos e leigas é pedra fundamental para a credibilidade do anúncio libertador do Evangelho. Segundo o princípio antigo do direito “O que concerne a todos/as, seja decidido por todos/as” se exigem mais estruturas sinodais em todos os níveis da Igreja. Os e as fiéis devem participar da nomeação dos ministros ordenados importantes (bispos, pároco). O que se pode decidir localmente, seja ali decidido. As decisões têm que ser transparentes.

Cooperação efetiva laicato-clero com respeito recíproco
2. Comunidade: As comunidades cristãs devem ser espaços nos quais as pessoas partilham bens espirituais e materiais. Mas atualmente a vida das comunidades se desfaz. Sob a pressão da escassez de sacerdotes, constroem-se unidades administrativas cada vez maiores = “paróquias XXL” -, nas quais já não se pode experimentar a proximidade e a pertença. Identidades históricas e redes sociais construídas são abandonadas. “Bota-se os sacerdotes na fogueira” e eles se queimam. As e os fiéis se distanciam, se não se lhes confia corresponsabilidade nas estruturas democráticas da direção das comunidades. O ministério eclesial tem que servir à vida das comunidades – não o inverso. A Igreja necessita também de sacerdotes casados e mulheres no ministério ordenado.

3. Cultura jurídica: O respeito e reconhecimento da dignidade e liberdade de cada pessoa se mostram, especialmente, quando se resolvem os conflitos de uma maneira justa e respeitosa. O direito canônico somente merece este nome se os e as fiéis realmente podem fazer valer os seus direitos. A proteção do direito e a melhora da cultura jurídica urgem em nossa Igreja; um primeiro passo para avançar é a criação de um sistema eclesiástico de justiça administrativa.

4. Liberdade de consciência: O respeito à consciência pessoal significa, ter confiança na capacidade de decisão e responsabilidade das pessoas. Apoiar esta capacidade é também tarefa da Igreja: mas isto não deve converter-se em tutela. Levar isto a sério, concerne sobre tudo a área de decisões na vida pessoal e estilos individuais de vida. A valorização eclesial do matrimônio e do celibato está fora de questão. Embora isto não implique excluir as pessoas que vivem o amor, a fidelidade e o cuidado mútuo, numa relação de casal com pessoas do mesmo sexo ou a àqueles e aquelas divorciados/as que casaram outra vez, e que vivem de maneira responsável.


5. Reconciliação: Solidariedade com os e as “pecadores/as” supõe levar a sério o pecado no próprio âmbito interno. Um rigorismo moralista ególatra não cai bem para a Igreja. A Igreja não pode pregar a reconciliação com Deus, sem criar em sua própria ação as condições de reconciliação com os e as que ela mesma distanciou: pela violência, pela privação da justiça, pela perversão da mensagem libertadora da Bíblia, numa moral rigorista sem misericórdia.

6. Celebração: A liturgia vive da participação ativa de todos os e de todas fiéis. Experiências e expressões do presente têm que ter seu lugar nela. A liturgia não pode congelar-se no tradicionalismo. A pluralidade cultural enriquece a vida litúrgica e não tem a ver com tendências a uma unificação centralista. Somente quando a celebração da fé engloba situações concretas da vida, a mensagem eclesial pode chegar às pessoas.

O diálogo eclesial iniciado pode levar à libertação e ao ressurgimento, se todas as pessoas envolvidas estiverem dispostas a enfrentar as perguntas urgentes. Trata-se de buscar soluções por meio do intercâmbio livre e justo de argumentos, que tirem a Igreja de sua autopreocupação paralisante. À tormenta do ano passado, não pode seguir a calmaria! Neste momento esta somente poderia ser compreendida como um silêncio sepulcral. O medo nunca foi um bom conselheiro em tempos de crise. Cristãos e cristãs são provocados/as pelo Evangelho a olhar para o futuro com ânimo e - respondendo à palavra de Jesus – caminhar sobre a água como Pedro: “Por que têm tanto medo? Tão pequena é a fé de vocês?”

11 de fevereiro de 2011. Texto original em alemão:
“Kirche 2011: Ein notwendiger Aufbruch”; en: www.memorandumfreiheit

 Documentos do Concílio Vaticano II – “Gaudium et Spes”
Para a plena humanização

26. (...) Simultâneamente, aumenta a consciência da eminente dignidade da pessoa humana, por ser superior a todas as coisas e os seus direitos e deveres serem universais e invioláveis. É necessário, portanto, tornar acessíveis ao homem todas as coisas de que necessita para levar uma vida verdadeiramente humana: alimento, vestuário, casa, direito de escolher livremente o estado de vida e de constituir família, direito à educação, ao trabalho, à boa fama, ao respeito, à conveniente informação, direito de agir segundo as normas da própria consciência, direito à protecção da sua vida e à justa liberdade mesmo em matéria religiosa.
A ordem social e o seu progresso devem, pois, reverter sempre em bem das pessoas, já que a ordem das coisas deve estar subordinada à ordem das pessoas e não ao contrário; foi o próprio Senhor quem o insinuou ao dizer que o sábado fora feito para o homem, não o homem para o sábado. Essa ordem, fundada na verdade, construída sobre a justiça e vivificada pelo amor, deve ser cada vez mais desenvolvida e, na liberdade, deve encontrar um equilíbrio cada vez mais humano. Para o conseguir, será necessária a renovação da mentalidade e a introdução de amplas reformas sociais. (...)
*                                O seguimento de Jesus é o compromisso maior do cristão: ver o mundo pela ótica de Jesus, orientado por sua ação, anunciando o Reino e denunciando tudo o que conspira contra a sua irrupção na história humana.
*                                Para uma ação transformadora no mundo o cristão deverá preparar-se: para isso servem as escolas e universidades católicas - ou não servirão para nada.


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